A fuga das calopsitas no verão de 2017

Carolina Bataier
3 min readFeb 25, 2021

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Um dos fenômenos mais intrigantes que já presenciei foi a fuga em massa das calopsitas no verão de 2017. Na linha do tempo do Facebook, vi dois anúncios. O terceiro chegou aos meus ouvidos pelo lamento duma amiga: “Minha mãe só chora. A bichinha pousava no ombro toda tarde quando ela sentava no computador para ler notícia”.

Mas a confirmação do fato chegou quando a casa da minha avó virou palco duma convenção de donos de calopsitas desaparecidas.

Começou com meu avô chegando da padaria e derrubando os pãezinhos porque, na varanda, uma passarinha desesperada voava duma parede a outra diante dos olhos do gato todo eriçado no degrau de entrada pra cozinha, o bote armado. A calopsita em pânico se embrenhou no cabelo do velho, ele também em pânico agarrou ela, vó apareceu na porta a tempo de segurar o gato e evitar um desastre maior.

De tardinha, fui chamada:

- Cê que entende de internet, anuncia pra nóis, bem.

Fiz a foto da ave amuada na gaiola e publiquei, na contramão dos outros anúncios. “Calopsita encontrada procura dono em Duartina”. Uma hora e 19 compartilhamentos depois, cinco pessoas mandavam mensagem solicitando o endereço.

A primeira possível dona quis conferir de perto o que já desconfiava: a asa toda amarela excluía a possibilidade de ser a sua, com manchinhas cinza. A segunda veio desde a calçada chamando “Daviii, Daviiiiiii”, com o i comprido e desafinado, na esperança de ouvir em resposta um assovio. A passarinha na gaiola nem levantou o olhar. O terceiro chegou segurando um pedaço de goiaba vermelha. Foi ignorado e comeu, ele mesmo, a fruta, cabisbaixo. A quarta dispensou logo de cara: sem chance, na foto parecia, mas a minha é maiorzinha assim. O quinto não quis perder tempo. Telefonou e pediu que eu chamasse: Daaalva, assim, arrastando o primeiro a, ele orientou. Desafiei minhas cordas vocais em todos os tons possíveis. Ele pediu que eu colocasse o telefone pertinho da gaiola e, do outro lado da linha, gritava: Daaalva, Daaalviiinha, meu amor. Nada.

Cidade tão pequenininha, não é possível que haja mais gente com calopsita perdida por aí, eu matutava. Isso dá o quê? Uma média de 0,5 calopsita per capita, considerando as não fugidas?

Meu avô já preparava um mingauzinho de floco de milho para alimentar a passarinha quando chegou mais uma mensagem: “Oi, boa noite, eu moro do lado da casa da sua avó. Essa calopsita é minha”. Desconfiei. “Ah, é? Quer vir conferir?”. “Não tem erro. Ela canta a música da Samsung”.

Nem bem o marido da vizinha chamou no portão, a ave soltou a voz igualzinho o toque do celular. Batemos palmas e a bichinha se balançou toda, orgulhosa. O homem, lágrimas nos olhos, estendeu o dedo para ela, que deu dois passos para trás e olhou desconfiada. Abriu o bico, numa feição que — eu não sou ornitóloga, mas entendo de fúria — não era boa. Ele, pelo jeito, acostumado à personalidade forte escondida debaixo das penas pequenininhas, enfiou na gaiola a outra mão e capturou a fugitiva, segundos antes de ela dar um show.

Foi tudo premeditado, eu desconfio. Certamente, havia outro sinal, não um toque de celular, algum assovio que só as calopsitas reconhecem. Algumas conseguiram.

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Carolina Bataier
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