Altar de recordações
Seu Antônio, meu bisavô, passou os últimos anos de vida no sítio onde cresci. A casa de madeira, à sombra do abacateiro centenário, tinha janelas e portas sempre abertas. Nas pausas das brincadeiras, eu e meus irmãos passávamos ligeiros pela entrada. Vez em quando, empurrando-nos ombro com ombro, derrubávamos a bengala de carvalho apoiada no batente — única pista dos mais de 90 anos daquele senhor sempre alinhado em camisas de botão.
Nossos pezinhos saltitavam sobre o chão avermelhado da sala, na fila do assalto à abóbora de porcelana, cofre dos tesouros açucarados que vô Tonico trazia da cidade, toda sexta-feira, para mimar nossos dias.
Quando sumíamos de vista, mãe sabia: enchíamos o bucho com balas e bombons. Reaparecíamos sorridentes, com a língua rosada, beiços e pontas dos dedos pintados de marrom. Mãe dava risada e acarinhava nossos cabelos.
Numa manhã de sol quente, quando nossas tias levaram vô Tonico para o hospital, ficou sobre a mesa, dentro da sacolinha listrada, uma garrafa de cachaça e um pacote de balas de caramelo — derradeiros regalos vindos da cidade. Os doces nem tiveram tempo de serem guardados dentro da abóbora. Seu Antonio caiu antes. Ficou estirado no chão até minha avó encontra-lo e gritar por ajuda.
A bengala passou dias apoiada no tronco do abacateiro, ao lado da cadeira onde o velho descansava nas tardes de brisa morna.
Muitos anos depois, quando girei a chave do cadeado da porta e adentrei a casa em busca livros de perdidos nas minhas mudanças, esgueirei meu corpo pelas brechas entre os tantos móveis acumulados. Uma cômoda que foi minha, o guarda-roupas antigo da minha avó, mesas do restaurante recém desmontado da minha tia, o sofá da minha prima aguardando o fim da reforma da casa na cidade. Num canto, sobre uma cristaleira de vidros quebrados, a abóbora de porcelana pintada de cinza por uma grossa camada de poeira. Ao lado dela, o bule prateado que, nas manhãs de sol, iluminava-se pela luz da janela enquanto vô Tonico aguardava o borbulhar da água para passar o café.
Voltei para casa, quilômetros de distância, levando o bule na mochila.
Outro dia, uma vizinha sugeriu que devemos ter um altar com pedaços de memória — cartas, fotos, santos, velas — relíquias que nos lembrem de quem somos. Decidi converter toda a minha casa em altar. Sobre o armário da cozinha, quando entram os raios do sol de outono pela janela, o bule ilumina-se.
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