O primeiro eclipse solar e as balas chita
Eclipses sempre me lembram de primeira vez em que fui escolhida para buscar o giz da tia Soraia. Ela não se importava que chamássemos de tia, e só corrigia quando tinha mais gente por perto.
— Você já é grande pra falar tia. É pro-fes-sora — explicava, tocando minha testa com a pontinha dos dedos.
Buscar a caixinha de giz era coisa séria. Tinha o reconhecimento por ser uma pessoa digna daquela tarefa e a possibilidade de gastar uns minutinhos da aula do lado de fora da sala. Só glórias.
Quando voltei com a caixinha de papelão nas mãos, tia Soraia balançou as pulseiras douradas e prendeu os cabelos no alto da cabeça com uma presilha colorida.
— Psiiiiiiu! Aqui, todo mundo. Hoje eu vou ensinar pra vocês o que é um eclipse. Quem aqui sabe o que é? Depois, a gente vai lá fora ver.
E desenhou na lousa uma bola amarela: o sol. Ao lado, com uns centímetros de distância, fez outro círculo em cor-de-rosa: a terra. Entre os dois, rabiscou uma lua branca. Depois, noutro canto do quadro, refez o sol amarelo e pintou por cima dele o branco da lua: é assim que acontece. Vamos?
A quadra da escola virou o nosso planetário. Todas as crianças explodiam energia dos lanchinhos saturados de açúcar e sódio, porque os anos 90 eram terra sem lei nem Bela Gil. Eu não sei se vocês fazem ideia do que foi essa época, nutricionalmente falando. A gente bebia fanta uva no recreio, depois comida um batom — o chocolate- e arrematava com bala soft, daquelas que matam, ou balas de canela, igualmente letais. Toda essa energia tinha que ir para algum lugar e, por isso, qualquer oportunidade de sair da sala de aula era fortemente almejada por nossos coraçõezinhos açucarados.
Fugi dos olhos da tia Soraia e passei na cantina. Voltei para o meu grupo com os bolsos do moletom cheios de bala chita, as melhores, só comparáveis às sete belo.
Os cabelos da tia já estavam todos soltos e só a presilha permanecia no topo da cabeça, tal qual borboletinha pousada sobre patinhas de plástico. Ela suspirava e avisava que não podia olhar direto para o sol, oh, senão vai queimar os olhos de vocês, e é para ficar junto, entendeu? cada um com sua turma, felipê, por favor!.
A ideia era que observássemos o dia escurecer às 3 da tarde. O professor de uma turma de crianças mais velhas fez um truque com espelho e eles viam o eclipse refletido na parede. Ao meu lado, estava o Espingarda, menino dentuço que tinha esse apelido porque um dente era mais retraído que o outro e alguma criança com referências preocupantes fez a comparação com uma espingarda de cano duplo. Ele segurava uns negativos de fotografia.
Eu usava o indicador para descolar dos dentes do fundo os restos da terceira bala quando o Espingarda cobriu o olho direito com os negativos e fechou o esquerdo.
— Noooossa, eu tô vendo tudo! Olha lá, olhá lá o eclipzzzz — falava com gotinhas de saliva pulando entre os dentões. E fingia não ouvir nossos pedidos ao redor: deixa eu ver também, só um pouquinho.
Te dou duas balas, propus. Ele me passou o negativo. Peguei com as pontas dos dedos grudentos de saliva e açúcar. Aproximei do meu rosto e vi o que devia ser a silhueta da família do Espingarda num registro de festa de aniversário. Espremi os olhinhos na intenção de decifrar as figuras em preto e branco, espalhei minha saliva de bala chita por cima de tudo e tentei limpar esfregando o plástico na calça de moletom, o que piorou a situação. Ele pediu de volta, eu não tinha visto eclipse nenhum mas achei justo, afinal, naqueles tempos nós comprávamos 3 balas por cinco centavos, um aluguel muito barato para a tecnologia de ponta que ele tinha a nos oferecer. Reclamou que estava tudo babado. Botei mais duas balas na boca e falei que tanto faz, a tia já tinha desenhando na lousa, bom mesmo era ver o dia escurecer naquela hora da tarde, igual acontecia no Alasca.
Em casa, minha mãe perguntou como tinha sido o eclipse. Falei que queria morar no Alasca, onde tem eclipse todo dia. Eu estava mais interessada nas balas chita, que para mim têm até hoje esse gosto de dias de sair da sala para ver fenômenos naturais.
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Este texto está no meu livro, O pôr do sol dos astronautas.