Eu sou do tempo da kombi do pão

Carolina Bataier
2 min readApr 11, 2024

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Eu sou muito jovem, ainda, mas já vivi o bastante para usar a expressão “eu sou do tempo que…”. E, além de ter celebrado aniversários o suficiente para encher um baú de memórias, eu faço parte da última geração que viveu a infância sem internet.

Depois que minha mãe comprou um rack caramelo e instalou na sala aquele trambolho branco com monitor, CPU e duas caixinhas de som, o tempo andou mais depressa. Internet discada, telefone com fio, disquete, tudo isso ficou pra trás.

E, antes disso, teve muita coisa. A kombi do pão, por exemplo. Lembrei dela porque antes de escrever num teclado, eu escrevi no papel de pão. Antes de ter uma escrivaninha e um canto todo meu para a escrita, eu observei as mãos ágeis da minha avó segurando a caneta bic e rabiscando palavras no papel cinza apoiado sobre a mesa da cozinha. Ela afastava os farelinhos e escrevia. Eu acompanhava o vai e vém da caneta enquanto pinçava com meus dedos os restos do pão da manhã.

Na arte de guardar memórias, a escrita tem vantagem sobre a fotografia. A foto reproduz a cena com precisão, mas não revela o cheiro, nem o som, o antes e o depois. Com a escrita, eu posso tentar.

A kombi rodava as ruas da cidade pelas manhã e parava na esquina, diante da casa dos meus avós. As mulheres saíam na calçada e faziam rodinhas diante da porta lateral da padaria ambulante, enquanto o vendedor recebia os pedidos e entregava 3, 5, 8, 10 pãezinhos frescos embrulhados no papel.

Não era um pacote como hoje conhecemos, com boca, fundo e até logomarca da padaria, mas um papel retangular com os pães aninhados no centro. Depois do almoço, uma boa parte do embrulho estava livre de pães e, por isso, podia ser usada para outras tarefas: secar uma gota de molho na toalha da mesa, limpar a poeira das lentes dos óculos ou receber palavras escritas com tinta azul. Poderia ser um bilhete, números, um poema, um bilhete de despedida, como cantou Jorge Aragão.

Daqui a um tempo, essa música não vai fazer sentido. Como assim um bilhete no papel de pão? Que papel é esse? A kombi do pão não existe mais, nem o papel. Por pouco não desaparecem também da minha memória.

Por isso eu escrevo, talvez menos pelo papel e mais pelas tardes mornas de aprendizado com a minha avó. Meu avô saía para trabalhar, a casa ficava em silêncio e o sol desenhava nas paredes da sala a sombra das árvores. Uma brisa corria pelos cômodos e o mosaico de pedaços de azulejos de todas as cores unidos com cimento não gelava meus pés descalços quando eu caminhava ao redor da mesa. Tinha o som da buzina do sorveteiro e o cheiro das bolhacinhas de nata assando no forno. Às vezes, o tec tec tec da máquina de costura. Cantorias, café moído, ensinamentos sobre tricô, crochê e o jeito certo de lavar copos e talheres. Kombi, papel de pão, nada disso existe mais. Minha avó, não. Embora tenha sumido de vista, ela nunca deixou de existir.

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