Folia de Reis e a importância da memória
Ontem*, rolando o feed do Instagram, vi a foto linda, contraluz, duma Folia de Reis, da página @nitro_historiasvisuais. Bandeira hasteada sobre estradão de terra, chapéu, violeiro. Lembrei da música do Tim Maia. “Anda meio esquecido, mas é o Dia da Festa de Santo Reis”, canta o Tim.
Fui buscar essa música, acabei chegando em outra. Maria Bethânia cantando Folia de Reis e o verso “salve a hóstia, o Calix Bento, o menino Deus e Nossa Senhora”. Foi aí, nessa frase, que a minha memória me levou para longe.
Era 2018 e eu estava em Morrinhos, uma vila à margem do rio Urucuia, no norte de Minas Gerais. Vila mesmo, dessas com poucas casas, igrejinha, quintais com horta, plantação de mandioca e criança brincando. Asfalto não tem, luz às vezes falta, cavalo pasta na calçada. Eu andava pela rua principal, que não tem mais de três quarteirões, se não me falha a memória. De longe, vi um amigo sentado no banco de madeira debaixo duma árvore grande, diante da igrejinha. Ele me viu e chamou, no sussurro, “chega aqui”. Eu escutava de longe a viola e entendi que vinha de dentro da igreja. Quando encostei no banquinho, percebi a visão privilegiada do que se passava na igreja. Um violeiro, três senhoras, um homem de chapéu, todos cantando Calix Bento diante do altar.
Dessas cenas tão simples e majestosas a ponto de eu agradecer por estar viva naquele momento, naquele dia.
Viola e Folia de Reis mexem comigo porque me lembram da infância. Todo ano, os foliões passavam no sítio onde eu vivia com meus pais e avós. Certa vez, eu me escondi no quarto, assustada com o marungo — o palhaço da folia. Encolhida debaixo da cama, eu escutava, vindo lá de fora, o som do pandeiro, da viola e da cantoria.
A curiosidade, mais braba que o medo, me tirou do esconderijo e me levou até a porta da casa, entreaberta. Fiquei ali, meio dentro, meio fora, espiando a festa. Meu pai segurava a bandeira, os homens cantavam, o marungo dançava na luz amarelada da varanda. Mais adiante, o breu da noite. Andavam na estrada, eles, chegando em sítio, juntando qualquer doação, comida, bebida, dinheiro, para depois fazer a festa pra toda a comunidade.
Viola e Folia de Reis são coisas, no interior de São Paulo, cada vez mais difíceis de encontrar. Em 2019, eu almocei na casa do seu Antônio Correia, morador de Bauru, que todo ano juntava a família para fazer a sua folia na rua. Ele ensinava aos filhos e netos os toques da folia, fazia fantasia, vestia todo mundo e saía pela rua. Naquele dia, comemos frango, macarrão e farofa no quintal da casa cheia de parentes e vizinhos.
Numa pesquisa rápida pelo Google, soube que Antônio não mora mais em Bauru. Espero que tenha levado a folia para outros cantos.
No fim de 2024, trabalhei na edição do livro À beira do fogão — lembranças, sabedorias e comidas das roças de Capão Bonito, da amiga Natália Almeida, publicado pela Quintal Edições. O livro mistura as receitas da avó da autora às lembranças da vida na roça. No capítulo de introdução, Nati escreve assim:
“Em um momento em que as histórias estão sendo apagadas e as memórias das crianças e jovens seguem, cada vez mais, vinculadas às tecnologias, organizar esse livro é um pedido de socorro. Histórias, tradições, roças e comidas, como estas contadas aqui, não podem desaparecer”.
A importância de lembrar
Decidi assistir à série Cem Anos de Solidão, da Netflix, depois de algum receio porque o livro é um dos meus preferidos e eu sou desconfiada com as adaptações. Surpreendi-me com a beleza das cenas, o respeito à história e, mais uma vez, mergulhei no universo fantástico, e tão real (porque nos fala tanto sobre a nossa história), criado pelo Gabriel García Márquez.
Li o livro há anos e já esqueci de muita coisa. A doença do sono, por exemplo. Acontece de, em certo momento, os moradores de Macondo — a vila-cenário da trama — sofrerem de insônia. Sem dormir, passam a esquecer os nomes das coisas e, depois, a função delas.
Por fim, a perda da memória acaba em brigas, angústia e caos.
Imagino haver um tanto de interpretações para esse trecho. Para mim, guardo a mensagem sobre a importância lembrar. Quem somos, de onde viemos, o que podemos fazer com o que temos em mãos.
Sou desconfiada com a ideia de progresso que nos diz que o melhor está lá, adiante. Isso é, também, um jeito de nos dizer que o passado não presta. Eu prefiro acreditar na soma dos aprendizados de agora mais aqueles que vieram de antes.
Eu gosto de saber das receitas da minha avó. Fico feliz em aprender com a sabedoria da avó da Nati. Meu pai conta que, nas noites de frio, minha avó, mãe dele, colocava ele sentado no canto do fogão de lenha. Ficava ali, aquecido, ouvindo as conversas dos adultos na cozinha.
A cozinha era lugar de encontro. As comidas carregam saberes. As folias terminam em um grande almoço. No prato, macarrão, farofa e galinha caipira contam um pedaço de história do interior paulista.
Na breve pesquisa sobre a Folia de Reis de Bauru, descobri grupos tentando manter viva essa tradição e fazendo festa na rua. Espero que as pessoas ainda abram as casas para receber os músicos.
Eu gosto das festas populares porque elas nos falam de comunidade. E eu gosto de passear pelo passado, pelas cozinhas de gente reunida, fogões de lenha, quintais e varandas, para não esquecer de que a vida é junto.
Feliz 2025.
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*Este texto foi escrito no dia 7 de janeiro, um dia depois do dia de Santos Reis. Ele foi publicado no meu perfil no Substack e você pode me acompanhar por lá também. Para isso, clique aqui.