Memória fotográfica

Carolina Bataier
3 min readJun 27, 2020

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Estou lendo “Uma autobiografia”, da Rita Lee. Ela inicia o livro de memórias — aleatórias e narradas com despretensão — descrevendo o casarão onde passou a infância, na Vila Mariana, em São Paulo. Escada, quadro na parede, banheiro, tudo é revisitado em detalhes.

Na sala da casa dos meus pais tem um espelho grande, em moldura escura, pendurado sobre um aparador de madeira na mesma tonalidade. Minha mãe conta que quis reproduzir naquele canto um pedacinho da casa onde moramos por 15 anos, em Dois Córregos, interior de São Paulo. Era uma casa com janelões de vidro voltados para a rua, de onde víamos as duas árvores grandes da calçada, os carros e as pessoas que passavam. Não havia muros atrapalhando a vista. O limite entre nosso quintal e a calçada era delimitado por um portãozinho mais baixo que as janelas. O espelho ficava num hall diante da porta da cozinha, no início do corredor que conduzia aos quartos. Entre uma sala e outra, tinha uma porta dupla, feita de mogno, como aquelas de saloon de faroeste. A gente empurrava teatralmente com as duas mãos, escancarando a abertura e dando ar triunfal à entrada na sala de visitas. A porta se fechava às nossas costas. Ali, ficava o rádio e um quadro grande, em cores primárias— Os músicos do Central Park era o nome da obra assinada pela filha do amigo do meu pai. Esses e outros detalhes, como o telhado da edícula ao fundo, facilmente acessado pelo muro lateral, onde eu e meu irmão subimos algumas vezes para admirar o céu, foram se desenhando na minha memória enquanto eu lia o relato da Rita.

Era uma casa grande, cheia de coisas que já estavam lá quando chegamos, como o espelho e a porta de madeira; e outras que trouxemos: quadros, móveis, marcas de pés nos muros usados de apoio para as escaladas. Na casa onde meus pais vivem hoje, a mesa da sala nunca está arrumada. Tem sempre papéis, vasos de planta, fotos e objetos dos mais diversos esquecidos por ali: chaves, lanterna, moedas, chicletes, anéis. No barzinho — aqueles de canto de sala de estar — sempre falta uma taça, frequentemente encontrada suja sobre a mesa da cozinha, com um restinho de vinho manchando o fundo.

Onde moro, o cinzeiro nunca está vazio e os livros se acumulam em pilhas sobre os móveis. É natural que, onde há gente, coisas quebrem, sejam esquecidas e transferidas de um canto a outro. As casas moldam-se às vidas que transitam por elas.

A gente é feliz quando e também é feliz onde. E felicidade de gente deixa marca em pessoas e lugares. Depois, vira tudo memória pra fechar os olhos e lembrar do balcão da cozinha onde, encostados, jogamos tanto conversa fora. Esqueci de pessoas, festas e datas, mas lembro com detalhes dos ambientes onde vivi bons momentos, como as telhas da varanda da casa da minha avó, com a inscrição em alto relevo: São Sebastião, o nome da olaria.

Anos depois, quando voltei a Dois Córregos, quis passar em frente à casa do portãozinho baixo. Minha amiga advertiu: tem certeza? Seguimos em frente e demorei uns segundos para entender: as janelonas de vidro estavam escondidas atrás de um portão alto, branco, metálico, uma dessas barreiras insossas de fortalezas contemporâneas.

A casa onde crescemos só existe agora na minha memória, num nítido sinal de que nada, nem o que é de tijolo e cimento, dura para sempre no universo material.

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Este texto está no meu livro, O pôr do sol dos astronautas, publicado em 2018. Para comprar, você pode acessar a Amazon e o site da editora Letramento.

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Carolina Bataier
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