Não gosto de escrever, gosto de ter escrito

Carolina Bataier
Parachoque
Published in
5 min readAug 20, 2022

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Eu ainda escrevo, embora a última newsletter tenha sido enviada em maio. Mas acho que tudo bem não manter uma frequência tão rígida, né? Por aqui, quero que as coisas sejam, antes de tudo, prazerosas — para você e para mim.

Tenho levado muito a sério meus momentos de lazer e descanso (no fim deste texto, deixo um vídeo com uma boa reflexão sobre esse assunto). Por isso, leio deitada na rede mais do que fico sentada diante da tela. A escrita me traz, sim, alguns prazeres. Mas o que ela, por vezes, exige — ligar o computador, ajeitar-me numa cadeira, concentrar-me, pensar as palavras — nem sempre é prazeroso.

Numa entrevista, certo escritor disse “não gosto de escrever, gosto de ter escrito”. Acho que foi Fernando Sabino. Essa frase, em alguns momentos, me contempla. Também porque passo 40 horas por semana sentada diante do computador dedicando-me às tarefas do trabalho que permite meu sustento. Acontece muito no universo da escrita: o texto criativo nem sempre paga as contas. Então, a gente vai encaixando as palavras nas brechas do dia a dia.

Tenho um amigo que escreve no transporte público, nos caminhos entre casa, trabalho e faculdade. As anotações vão se ajeitando num bloquinho, no ritmo do balançar do ônibus. Eu tinha as tardes de domingo como momento de encontro com minha escrita mas, com a gestação, outras coisas ficaram mais urgentes — banho de rio, sol, suco de frutas, pernas para o alto.

Gerar uma vida exige energia — física e emocional. A cada dia, compreendo melhor e aprendo a respeitar os sinais do meu corpo. Meses atrás, senti desejo por leite e iogurte. Era a fase de formação dos ossinhos da bebê. Depois, veio a fome de feijão e couve, porque meu sangue estava carente de ferro. Agora, na metade no sétimo mês de gestação, já sentindo as dores nas costas e perdendo algumas noites de sono, preciso de paciência. É o tempo da espera e eu ando sedenta por suco de maracujá.

Não tenho o empenho do meu amigo em escrever à mão no chacoalhar do ônibus mas, enquanto sentar numa cadeira diante da tela me parece cada dia menos interessante, uso o bloco de notas do celular. As palavras surgem no trabalho, no transporte público e no começo do dia. Aprendi com a poeta Giselle Ribeiro a dar importância aos pensamentos que amanhecem ecoando na cabeça.

Desses delírios matinais nasceu a brincadeira de inventar histórias para os meus antepassados. Esta fase de apego aos prazeres me aproximou da poesia. Vou aos poucos fazendo versos e criando lembranças, construídas com resquícios de memória e muita invenção. Sem pressa e com sabor.

Outro problema da vida de quem escreve é guardar muita coisa. A gente vai deixando na gaveta, na ilusão de lapidar cada vez um pouco mais. Juarez Xavier, meu orientador do mestrado, ensinou: é preciso abandonar os textos, senão eles nunca ficam prontos.

Então, para encerrar esta newsletter de agosto, que veio cheia de papo furado, deixo duas poesias em construção.

João e Maria

Minha bisavó tinha a cor
das balas de café
que enrolava
com as pontas
dos dedos
no papel manteiga
e guardava num pote
perto de outros doces:
de leite, de abóbora
cocada.

As flores do vestido
de botão
desabrochavam
sobre o corpo
rechonchudo
como as rosas do jardim
gordas
coloridas
iluminadas por gotas d’água
na chuva do esguicho
da mangueira
nas manhãs
de sol.

Era pequena
dum tamanho bom para caber
na casinha de madeira
dividida com Fulano
o gato dos olhos verdes
estirado na janela da cozinha
enquanto ela remexia as panelas
e assoviava
parecendo
um canarinho.

No dia do velório
Fulano deitou
de barriga para cima
debaixo da roseira
as flores sem brilho d’água
mas ainda rechonchudas
iguais a minha bisavó
dormindo no caixão.

Minha mãe pegou a lata
de cima da geladeira
me deu três balas e falou
- vá lá fora brincar com o gato.

Entre as árvores,
João e Maria
fizeram uma trilha
com migalhas de pão
mesmo assim
se perderam
e chegaram a uma casa
feita de doces
- a professora contou
e eu sabia

quem morre no final
é a bruxa.

*
Minha versão da história

Batizaram uma rua
na cidadezinha onde nasci
com o nome da minha avó.

Três anos depois da partida
numa esquina vazia de casas
uma placa azul e branca
expande os limites da memória
e cria um rastro no tempo
com o nome daquela mulher
de corpo pequeno e voz desafinada
que nas manhãs da minha infância
escolhia os melhores grãos de feijão
moía café, amassava pão
e escondia nas gavetas
cadernos de poemas.

Meus olhos
desde cedo
famintos por palavras
passeavam pelas letras
do papel amarelado
juntando a mais b
e no trabalho
de decifrar versos
eu pedia
lê pra mim?

Então minha avó
entre o engomar
de uma e outra camisa
recitava palavras
de autoria desconhecida.

Quando ela morreu
entrei sorrateira
na casa vazia
na mesa
o café frio
dentro da garrafa
o pano de prato
no encosto da cadeira
as duas xícaras descansando
sobre a toalha de crochê
à espera das mãos ágeis
para guardá-las
o cheiro do talco e do sabonete
do amaciante das roupas
insistindo pelo ar
debaixo
da pitangueira
o gato
alheio ao fato
de ser dali em diante
um pouco mais
solitário.

Abri o guarda-roupas
abracei os casacos
e surrupiei
os cadernos
de folhas amareladas
mordiscadas pelas traças
o tempo feito borracha
tentando apagar as letras.

Quando
daqui muitos anos
uma professora de história
pedir às crianças que investiguem
os nomes das ruas da cidade
para um trabalho valendo pontos
eu estarei sentada no banco da praça
— um museu feito de pele, sangue e cabelos brancos.

Diante dos olhinhos curiosos
contarei a minha versão:
aquela mulher,
do nome da rua,
foi uma grande poeta,
não sabiam?

Tenho provas.

*
Clique aqui para assistir a um vídeo com uma breve reflexão sobre obrigação e prazer.

Até a próxima, que pode ser daqui um mês ou três.

*Estes textos fazem parte da minha newsletter, Parachoque. Para receber no seu e-mail, clique aqui.

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