Paralelepípedos

Carolina Bataier
2 min readAug 29, 2019

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Hoje fiz um caminho diferente até a feira e descobri duas vielas de paralelepípedos. Meu coração de gente velha sempre se alegra com esses trechos de resistência perante o asfalto. É ruim para os carros, eu sei, e manter veículo custa caro. Por isso (também), não tenho. Mas a contrapartida das ruas macias é, por exemplo, enchente. Ilhas de calor. Essas coisas das aulas da geografia.

Além do coração de gente velha, tenho essa mente resistente ao, como diz Bethânia, progresso vazio. Sei, claro, do privilégio por trás das minhas escolhas. Nem todos podem ir a pé até a feira na quarta de manhã e contar só com transporte público. Mas, enquanto posso, faço e abro mão de outros luxos. São trocas.

Por isso, também, escolho as feiras, acreditando na distribuição de renda. São, ali, famílias. Pequenas plantações, menos agrotóxicos, gente que vai usar meus quinze reais de hoje para viver. Nós precisamos acreditar nas nossas ações cotidianas para continuar vivendo, mesmo que acima disso tudo a máquina de moer gente seja muito maior, imensa.

E, na feira de hoje, do lado da banca de pastel, numa mesa grande formada de outras mesinhas menores emendadas, tinha umas 20 crianças uniformizadas. Uns 6, 7 anos, fase de alfabetização, se é que as crianças de hoje ainda aprendem a ler nessa idade. O diretor, com a careca suando, corria dum lado pro outro, copo de suco numa mão, duas garrafinhas de molho de pimenta na outra. Sei que era o diretor porque as crianças não paravam de dizer: “diretor, o meu é de laranja!”, “diretor, quero molho”, “diretor, o que tem naquela barraca?”.

A professora, descabelada, do mesmo jeito, suco pra cá, molho pra lá, mais dois pasteis. Eu fiquei olhando, sorrindo, porque pensei que algumas crianças dali vão lembrar desse dia para sempre, do dia que foram comer pastel na feira. Do mesmo jeito que lembro até hoje de quando eu saia da escola para conhecer o mundo. E sorri também pensando — e essas são as hipóteses do meu coração velho e minha mente resistente — nas pessoas que ainda acreditam.

Apesar do salário baixo, das crenças malucas contrárias a toda a ciência, da ignorância, da mecanização do pensamento, há pessoas, educadores, que acreditam nas diversas formas de conhecimento e levam crianças para comer pastel e ver o mundo, porque o mundo não é só lá fora. O mundo começa na feira atrás da rua de paralelepípedo, começa aqui no nosso quintal.

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