Por onde a luz entra

Carolina Bataier
2 min readNov 26, 2020

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Eu gosto de contar essa história porque ela é muito bonita.

Ali, entre o fim dos 20, começo dos 30, é como se a vida desse pra gente uma nova chance. Uma brecha pra ser qualquer coisa, mudar tudo, seguir outro caminho. E a gente era isso, sem dinheiro e encantados com o mundo.

Eu não tinha um canto meu, ele morava num apartamento de paredes rabiscadas num predinho universitário, a gente saiu gastando sola de sapato. Nada muito bom, tudo muito longe ou muito branco e planejado, sem quintal, sem respiro. Já era noite quando vimos a plaquinha: aluga-se.

O corretor de imóveis veio, não tinha energia elétrica, só a tela do celular e a luz da rua invadindo a janelona da sala. Um prédio velho no centro da cidade, três andares, gente muito antiga vivendo ali. É aqui.

O apartamento 5 foi, durante quatro anos, o quartel general das utopias. Veio mais gente, depois. Teve semanas de viver com 5 reais, e a gente deu conta. Teve o dia de estourar um champanhe abrindo a caixa do meu primeiro livro. Teve Maria Bethânia como mantra para concentração antes de subir no palco. Teve grafite na parede, trocas de livros, plantas, cachorro, gato, amor. Muito amor.

Não é só porque a gente foi meio artista, mas, principalmente, porque nos permitimos viver pequenas liberdades que na vida adulta parecem coisa distante. Tardes para pensar, sonhar com outros modos de vida e viver tão no presente que o futuro, quando chegou, foi de surpresa.

Hoje, no palco do Teatro Municipal de Bauru, Gabriel grava uma apresentação inspirada em O pôr do sol dos astronautas, o texto do meu livro. No uber, ele me mandou uma mensagem: tava passando o texto e entendi uma coisa. Qual o seu sentimento quando escreveu esse texto?

De que a gente é efêmero, mas não tem pesar nenhum nisso, respondi. Por isso a arte encanta: ela existe nos instantes. Por isso, também, o apartamento 5 nos fez um pouco artistas. Ali, vivemos brevidades. Agora, enquanto escrevo, Gabriel está no palco lendo um texto meu. Coisa simples, singela.

A vida adulta cobra planejamento, grande aspirações, alguma ambição, mas o bom acontece nas brechas.

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Carolina Bataier
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