Quando eu era ajudante do mágico

Carolina Bataier
3 min readMay 27, 2022

--

Minha casa ficava no fim da cidade. Dali em diante, era só mato — como diziam. Mas, antes do fim, havia um terreno onde, duas vezes no ano, se instalava o circo.

Minha mãe me dava moedas e mandava buscar leite e pão. No caminho até a vendinha, eu entortava o pescoço para observar as roupas dos artistas penduradas no varal e as crianças — filhas dos artistas — empurrando caminhõezinhos de madeira, pulando corda, tomando banho de bacia.

À noite, tudo desaparecia: varal, brinquedos, crianças e bacias. Sobre o gramado, só o brilho das luzinhas penduradas na lona azul.

Quando o cheiro de maçã do amor chegava até o portão da nossa casa e nos encontrava de banho tomado, nossa mãe nos enfiava nas melhores roupas, penteava nossos cabelos e nos levava até a fila do espetáculo.

O mágico entrava no picadeiro e meus olhos acompanhavam cada movimento da ajudante. Os gestos exagerados, os pés em ponta riscando o ar, os lábios vermelhos num sorriso de todos os dentes à mostra. Algumas usavam collant dourado, outras brilhavam em vermelho, prata ou azul. Eram estrelas feitas de glitter e paetês, iluminando cartas de baralho, fitas coloridas resgatadas da boca de voluntários da plateia, cartolas pegando fogo.

Em casa, eu vestia o maiô de verão e apresentava a coreografia para meu respeitável público imaginário. Colocava na vitrola um disco dos Beegees e repetia o bailado das ajudantes de mágico, os pés em ponta sobre o tapete da sala, o cabelo preso no alto da cabeça com elásticos coloridos, boca pintada de cor de rosa, mãos traçando linhas no ar.

Certa tarde, embrenhei-me no universo misterioso do baú de roupas velhas da irmã mais nova de minha mãe e encontrei uma meia calça enfeitada de estrelinhas prateadas. Busquei na cozinha a tesoura da vó e transformei a peça num par de luvas compridas, as bordas roçando meu suvaco.

Com o traje incrementado, improvisei minha dança diante do espelho. Dia seguinte, uma coceira debaixo dos braços virou mancha vermelha — um vermelhão!

O médico falou de alergia e receitou pomada. Vó esfregou folhas maceradas, tia disse que era bom cercar a mancha com desenho de caneta pra não alastrar pelo corpo todo. Mãe colocou no lixo as luvas.

Foi ali, desconfio, que soltei a mão da ajudante de mágico e comecei a pensar em outras profissões. Na escola, a professora pediu para desenharmos o que queríamos ser quando crescer. Rabisquei uma mocinha com maleta na mão. Ao lado dela, um cachorro. Veterinária, eu disse, coisa que nunca passou pela minha cabeça quando chegou a época do vestibular. Anos depois, no curso de pedagogia, reprovei por falta numa disciplina. As aulas, nas manhãs de quarta-feira, coincidiam com o ensaio da escola de circo.

  • *

Gostou deste texto? Você pode deixar seus aplausos. Eles vão até 50 e ajudam meus escritos a chegarem a mais pessoas.

Este texto nasceu de um exercício de memorialismo proposto por Stefanni Marion, como parte da Travessia Poética de Campo de Heliantos.

Eu também tenho uma newsletter. Assinando, você recebe, uma vez por mês, um texto meu no seu e-mail. São crônicas e ensaios sobre pessoas que encontro em viagens, livros e outras reflexões. Clique aqui para assinar.

--

--

Carolina Bataier
Carolina Bataier

No responses yet