Tapoér é coisa séria

Carolina Bataier
3 min readJun 27, 2022

A vizinha nunca tocava a campainha. Era sempre o mesmo grito da calçada: ô de casa. Sempre no fim da tarde, 15 minutos depois de minha mãe chegar do trabalho. Naqueles tempos, ela era uma das poucas mulheres do bairro com serviço fora de casa. Por isso, nosso lar ficava por último no roteiro da breve romaria, embora Soraia morasse na rua de trás.

Da cozinha, minha mãe respondia: entra, Soraia. Escutávamos o rangido do portão e, cada vez mais perto, os suspiros e gemidos que acompanhavam o caminhar lento.

Ela puxava a cadeira, ajeitada a bunda no assento, pendurava a sacolinha colorida no encosto da cadeira e despejava duas colherinhas de açúcar na xícara de café. Alisava o vestido florido sobre as pernas gordas, sorvia dois goles, mostrava as gengivas num sorriso: vamos lá, minha flor, que hoje tem coisa boa! O creminho de mão foi bom? Esse mês tem um novo, de erva doce, veio amostrinha.

Desfiava o rosário de produtos, aromas e benefícios enquanto tirava da sacola um maço de revistinhas e as espalhava sobre a mesa. Tinha a de cosméticos e perfumaria a preços muito bons — à base de mel de abelha, barbatimão e arnica - que prometiam desde uma pele mais jovem até o alívio de dores lombares. Em outra, batons de todos os sabores, fragrâncias florais e amadeiradas, cremes de poder rejuvenescedor — tudo em preços ainda bons, embora não tão baixos. Tinha ainda aquela dos aromas da natureza, embalagens bonitas, mas tudo um pouco caro, só para ocasiões especiais, presentes de aniversário, pequenos luxos. Na de lingeries, as mulheres da vizinhança anotavam seus nomes sobre o corpo de modelos magras exibindo rendas, camisolas e cintas para diminuir a barriga. E, certos dias, vinha a mais cobiçada de todas. Nem sempre estava na sacola — porque, eventualmente, alguma vizinha se apegava àqueles produtos e queria avaliar melhor, conversar com o marido, mostrar para a mãe: a revistinha dos potes e utensílios de cozinha. Os tapoér.

Bombril é esponja de aço, danone é iogurte, tapoér é pote. No catálogo de metonímias da nossa língua brasileira, os recipientes plásticos são coroados com a marca mais famosa e — qualquer pessoa garante — mais duradoura.

Podem ir ao microondas, à geladeira, com fruta, doce, salgado, caldo e pedra. A única regra de uso é: se vai, volta. Era o mantra repetido quando, anos depois dos tempos da visita rotineira da vizinha revendedora, os estudos me levaram a morar longe de casa. Nos domingos, antes de seguir para a rodoviária, enchia dois ou três potes com pedaços de frango, arroz, feijão, salada de batata, macarrão.

Semanas depois, trazia tudo numa sacolinha, um encaixado no outro, as tampas dançando no balançar do ônibus intermunicipal. Sempre tinha um manchado de molho de tomate. Às vezes, uma tampa perdida. Regra desrespeitada nunca passava despercebida. Tem dois tapoér meu com você, não tem? E eu ria. Minha mãe continuava: aquele verdinho eu levo salada no trabalho, não esquece, não. Se eu ria mais, minha mãe ameaçava: se não trouxer, vou lá buscar.

Sempre achei muita graça nesse apego.

Ontem, levei um pedaço de bolo para minha vizinha. Estique o pote na direção das mãos dela mas, antes de entregar, dei um apertãozinho. Olhei no olho: me devolve depois, hein?

Ela riu: tapoér é sagrado, né?

Eu ri, também. Imagina. Mas esse é de vidro, bom pra ir ao microondas sem liberar substâncias cancerígenas na minha comida, ótimo para a marmita. E a tampa tem duas abinhas que prendem nas laterais, faz téc. Cabe na mochila e não vaza nada, de jeito nenhum.

*

Tapoér, tapuér, tapauér. Como você escreve? Eu tive essa dúvida e optei pela grafia que considerei mais simpática.

Este texto não é publi, apenas um relato saudosista de uma jovem adulta. Se você gostou, deixe suas palmas. Elas vão de 0 a 50 e ajudam meus escritos chegarem a mais pessoas.

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