Uma casa perfumada — um conto

Carolina Bataier
4 min readFeb 10, 2023

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Com o tempo, passou a fazer de olho a receita aprendida com a mãe. Meia cebola picada, três dentes de alho médios — dos grandes, bastavam dois — amassados. Uma colher pequena de sal, tudo ardendo em um grosso fio de azeite.

Douradas as cebolas, quando o cheiro passeava pelos cômodos da casa, era o momento de despejar os grãos, mexer com colher de pau, verter a água e esperar. Repetidas dia sim, dia não, as medidas enchiam uma panela pequena — comida suficiente para satisfazer três estômagos.

Quando a filha passou a estudar em período integral, nada mudou. Era de pouco apetite, a menina. Uma colher a mais em cada prato e estavam resolvidas as sobras.

Mas hoje, pela primeira vez, será necessário adaptar as quantidades a uma só fome. Parte a cebola em quatro partes, guarda três em um pote. Espreme os olhos, irritados. Esfrega a testa com as costas da mão. Uma agonia arde-lhe a face e, no esforço de separar as pálpebras, encontra o olhar, seu mesmo, embaçado e refletido na lâmina da faca. Vê as pupilas brilhando ao centro da vermelhidão. Tomba a lâmina e examina os cabelos escapando do rabo de cavalo pelas laterais, os fios colados às têmporas. Sorri com a descoberta da nova função do utensílio e retorna à tarefa de picar os legumes. Finca a unha no dente de alho — um bastaria — e puxa a pele fina. Leva o dedo à boca. O sabor lhe agrada, traz memórias de tempos de menina ajudando a mãe na cozinha. Gosta do cheiro grudado à pele, acende lembranças das mulheres da família. A avó, com as mãos frias a acarinhar o rosto dos netos. As tias, oferecendo pedaços de manga cortada, massa de pão, ramos de hortelã. Com os dedos pousados debaixo das narinas, sente o coração dar um salto ao soar o estalo do relógio na parede marcando meio-dia. Em pé sobre uma cadeira, alcança-o e tira dele as pilhas.

Fio de azeite na panela, cebola, alho, sal. Os grãos de arroz caem aos poucos, como chuva grossa cantando sobre o telhado da varanda. Ela observa dosando a nova medida.

Por fim, a água.

As folhas de alface e os tomates estão lavados. Cenoura ralada. O peixe, temperado, fica pronto em cinco minutos. Não há nada mais a fazer, apenas esperar ao lado do fogão, quem sabe sentada diante da mesa, olhar perdido nos azulejos da parede. Desliza a bucha sobre a lâmina da faca, passa pela água fazendo escorrer a espuma e outra vez admira os olhos escuros.

Três vezes na vida o arroz passou do ponto. Na primeira, descuido besta. A vizinha chamou ao portão para devolver uma vasilha e a conversa se estendeu. O marido, apesar do paladar apurado, não chegou a reclamar do sabor. Entre uma garfada e outra, no mastigar lento, apenas cuspiu algumas palavras de desagrado: “quando Marluce aparecer nessas horas, diga que você tem coisa mais importante a fazer”.

Na segunda vez, foi porque a filha, manhosa, demorava para vestir o uniforme. Ao levantar a voz “vamos, que seu pai tem hora”, a menina agarrou-se à sua cintura, amolecendo a pressa da mãe. O afago na testa da criança revelou o estado febril e então o cheiro de arroz queimado entrou no quarto encerrando o carinho entre as duas. Da cozinha, o homem chamava “esqueceu, foi?”. E, depois, desdenhou: “uma febrezinha de nada, essa menina anda muito mimada”. Da panela de fundos pretejados, foi possível salvar três colheradas. Com a criança, fechou o trato: “deixa papai comer e depois faço uma sopa para você”.

Na terceira vez, quando uma gripe a segurou na cama até mais tarde e os afazeres se acumularam, havia previsão de chuva no fim do dia. Tentou ordenar as tarefas: preparar o almoço enquanto colocava as roupas na máquina de lavar, calculando o tempo para as camisas secarem antes do dilúvio. Mas a gavetinha do amaciante emperrou, ela enrolou-se no empurra-e-puxa e outra vez o arroz grudou no fundo da panela. Por sorte, o mal-estar tirava-lhe o apetite e foi possível salvar algumas colheradas, todas destinadas ao prato do marido que, ainda assim, balançou a cabeça. Comeu calado, sem perguntar da gripe ou da máquina de lavar, sem falar do tempo nem nada, mastigando lento cada garfada da carne picadinha.

Mas agora o relógio está desligado e ninguém chegaria exigindo o prato feito sobre a mesa. Recolhe, com a ponta do indicador, uma gota de azeite que desce vagarosa pela garrafa escura. Passa nos lábios, esfregando-os. Outra vez mira-se na faca, observando os contornos da boca reluzente debaixo da fina camada oleosa.

Caminha até o banheiro e admira no espelho as peças unidas daquele quebra-cabeça revelado pela lâmina de cortar cebolas. Boca ainda polpuda, os cantos um pouco mais repuxados para baixo. Desde quando? Solta os cabelos, balança-os, joga para um lado, para o outro, busca formas de ajeitar a moldura do rosto cansado. Pinça com os dedos um fio branco e observa-o dançar no ar até cair na pia. Pousa as mãos uma de cada lado da face e repuxa as bochechas esticando a boca. Libera a pele e observa tudo voltar ao lugar. Repete o movimento com os cantos dos olhos, apalpa o centro da testa dissolvendo a marca vertical entre as sobrancelhas, dá tapinhas no pescoço. Curva o tronco, aproximando-se do reflexo daquela mulher — ela, ainda tão bonita — e arreganha os lábios, observando o brilho esbranquiçado dos dentes. Faz bico, sorri. Abre o pote de hidratante, enfia o indicador, traz até o nariz, suspira ao sentir o frescor, espalha o creme pelas bochechas fazendo relaxar os músculos do maxilar, massageando com lentidão a própria pele, dedos passeando por carnes macias.

No reflexo do espelho, uma mulher despreocupada, deliciando-se com o cheiro do arroz queimado que passeia por todos os cômodos da casa.

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